Mercado superaquecido gera alguma crise posterior. Isso é quase um dogma do capitalismo. Quando Adam Smith se referia à Mão Invisível do mercado e quando ele dizia que o "o mercado não podia ter limitações pois ele mesmo se controlava", o escocês certamente se referia a isso. Exemplos práticos para essas teses do ótimo livro A Riqueza das Nações não faltam: a Crise de 1929 e a de 2008 são os dois grandes estandartes desse pensamento.
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O futebol brasileiro vive a mesmíssima situação que assolou o mundo há seis anos: valores inflacionados, quantias exorbitantemente altas (tanto de lucros quanto de despesas), dinheiro saindo pelo ladrão. Como qualquer mercado, uma hora o choque de realidade virá. E, cada vez mais, acho que o tranco virá tão forte que vai causar grandes problemas.
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Na verdade, o tranco já veio para alguns. Determinados clubes sofrem com dívidas. E não são aquelas dívidas que eram possíveis de se esconder (e seguir gastando como se não houvesse amanhã), são contas que inviabilizam qualquer projeto.
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A seu jeito, cada clube tem seus problemas e parece acordar aos poucos para eles. Alguns acordaram tarde demais, mas parece que todos sabem o tamanho do buraco no qual se meteram.
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Cada situação tem sua própria história. Os primeiros a acordar para o mercado inflacionado foram Grêmio e Internacional, que serviram de exemplo para todos os clubes país afora: passaram a lucrar com o próprio torcedor por meio de planos de associação - e, assim, diminuíram sua dependêndia da TV e passaram a ter a certeza de que teriam algum dinheiro no orçamento anual.
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O Cruzeiro, atual bicampeão brasileiro, apostou alto no começo de 2013. A aposta deu certo demais, mas... e se desse errado? O Fluminense tem o caso mais específico: sua parceria de quinze anos com a Unimed permitia ao clube pagar altos salários e trazer estrelas para o clube. Sem a parceria, rompida no final desse ano, como o clube ficará? Vale dizer: algumas das estrelas do time das Laranjeiras, como Darío Conca e Fred, interessam a boa parte dos clubes, mas suas pedidas salariais são irreais - salários que eram bancados pela empresa de convênios de saúde.
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Bem como qualquer crise, o aquecimento do mercado do futebol brasileiro tem seus agravantes.
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Quem arrematou o Brasileirão foi a RedeTV!, com a inacreditável oferta de R$ 1 bilhão por três temporadas. A Globo, que nem entrou na disputa, passou a negociar de maneira individual com cada clube. O valor do contrato de vinte clubes (alguns que nem estão mais na Série A) vazou, e temos a singela quantia de R$ 1,03 bilhão - por apenas um ano. Boa parte dos jornalistas que leio trabalha com a estimativa de R$ 2,5 bilhões. Antes de 2012, esse valor era de R$ 200 milhões - novamente por três edições do Brasileirão. Um aumento de dez vezes em um valor já imenso, do dia pra noite. Mercado superaquecido é isso - e, entre 2016 e 2019, essa quantia pode até dobrar.
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Em 2013, depois de um longo tempo, os atletas acordaram para a vida e formaram o Bom Senso FC. Uma das bandeiras da entidade era a de contrapartidas para clubes que deixassem de pagar seus atletas, com multas, perda de pontos e rebaixamento imediado. A mídia deu ampla repercussão para a organização, muitos torcedores compraram a briga e o governo apoiou a iniciativa. E, claro: o 7x1 da Alemanha sobre o Brasil na Copa do Mundo deixaram escancarados que tem algo errado demais no futebol brasileiro - e que o que acontece dentro das quatro linhas é apenas consequência do que ocorre fora dele.
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Por fim, a emenda que visava o parcelamento da dívida dos clubes com a União foi votada hoje. E, ao contrário do que o Bom Senso FC vinha conversando há um ano com clubes e com o próprio governo, a proposta aprovada pelo Legislativo prevê vinte anos para o pagamento dessas contas sem nenhuma contrapartida para quem não o fizer. Tudo para dar uma folga aos clubes - e fazer com que eles possam seguir gastando os tubos.
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O dinheiro tem que ser usado de maneira racional. Se o futebol brasileiro seguir nessa toada, sabe-se lá o que pode acontecer. E nós, como torcedores e principalmente como cidadãos, temos que cobrar clubes, governos e jogadores. Não apenas para fiscalizá-los, mas para evitar que nossos amores sumam do mapa.