Na última quarta-feira de cinzas a Beija-Flor conquistou seu décimo terceiro título no carnaval carioca. No hard news (jornalismo que cobre apenas os fatos que acabam de acontecer) convencional essa seria a manchete, sem grandes detalhes. Mas achei impressionante ver como a própria essência do hard news foi quebrada na cobertura da apuração do carnaval.
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Absolutamente todos os veículos de comunicação (sejam eles da TV, do rádio, impressos ou da internet) deram como destaque o enredo sobre um país ditatorial, que foi financiado pela ditadura local. Ninguém falou que nos últimos treze anos a Beija-Flor ganhou mais da metade dos títulos, por exemplo. Se um é notícia, o outro também é. Mas tudo bem, deixemos essa passar.
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O que vem por aqui é uma análise mais carnavalesca que o que costumamos ver. Hoje em dia, por conta da cobertura patética da Rede Globo de Televisão, criou-se uma geração que não busca informação nenhuma e fica presa nos seus achismos. Apesar disso, quero deixar bem claro que fui contra desde o começo do enredo sobre Guiné Equatorial (não só pela ditadura, mas também por não achar que daria um enredo interessante - me enganei nesse segundo, assumo) e também que repudio as palavras de Neguinho da Beija-Flor, que agradeceu à contravenção no carnaval. Até lendas tem seus dias infelizes.
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Mas... vi muita gente contestar o título da escola de Nilópolis. Mais do que isso: vi muitos desrespeitarem a escola e a chamaram de ladra, falarem que ela não merecia o título, que ela só ganha roubado e afins. Puro choro de mau perdedor.
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O carnaval de 2015 não teve um favorito destacado. Todas as escolas tiveram ao menos algum erro, o que colocou muitas em condição de igualdade. A minha favorita, por exemplo, foi a União da Ilha - que, aliás, foi sumariamente assaltada na apuração. Mas creio que os nomes que mais ouvi para ser campeã foram os de Portela, Salgueiro, Unidos da Tijuca e... Beija-Flor. Como um título pode ser contestado se a escola estava no bolo principal desde sempre? Falar com o resultado na mão é fácil.
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Mas, novamente, tudo bem. Se querem falar de injustiças, vamos lá:
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Começando pela apuração desse ano: todos diziam que o Salgueiro já começava em desvantagem por conta de seu samba-enredo, que estava abaixo da média. Eis que o samba salgueirense não perde nenhum décimo enquanto o da Beija-Flor, aclamado por todos, não ganha a nota máxima. A vermelho-e-branca, que teve que acelerar o passo no final do desfile, perdeu apenas um décimo em Evolução. Mais: a bateria da Imperatriz Leopoldinense, que desfilou com um seríssimo problema nos surdos de terceira (a péssima afinação era perceptível até mesmo no áudio da TV), teve notas melhores que a da União da Ilha, que passou muito bem na estreia de Mestre Ciça. É óbvio que os jurados erram, mas eles também beneficiam outras escolas.
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Também não vejo ninguém relembrando e a calamitosa apuração do ano passado. Não foi só o injustíssimo rebaixamento da Império da Tijuca que chocou. Após os desfiles, era perceptível que quem disputaria o título seriam Portela, Beija-Flor e Unidos da Tijuca - nessa ordem. O Pavão venceu, a Águia ficou em terceiro e a Beija-Flor... em sétimo. Como uma favorita fica em sétimo lugar? Com pressão, apenas. A escola nilopolitana foi muito contestada por falar de Boni - uma escola já tida como antipática falando de alguém da Globo resultou nisso. O desfile, que poderia tranquilamente ser campeão (apesar de seus erros), foi canetado até dizer chega. Nada me tira da cabeça que os jurados tiveram medo da dar notas altas para a escola. Venceu quem levou um carro que deu problema logo na comissão-de-frente - e que, por ter um enredo popularíssimo, não teve resistência nenhuma de quem julgava.
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Por fim: querem realmente falar de injustiça? Que tal, então, a Imperatriz dividir o título de 1989 com a Beija-Flor? E que tal a escola de Ramos dar o título de 2001 para a Deusa da Passarela, já que ninguém entende até hoje como a escola nilopolitana foi vice-campeã naquele ano?
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Chega de carnaval. Falemos agora de algo que os imbecis que se transformam em comentaristas de meia pataca de qualquer coisa sazonalmente são experts: analisar profundamente a história, a sociedade, a política e tudo que possa interessar e servir de crítica - tudo isso em profundas pesquisas no Google que duram cerca de oito minutos.
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Guiné não é só a ditadura. Como tudo que possa existir, o país tem muita história. Desde o descobrimento com Fernão do Pó (antes mesmo do descobrimento do Brasil) temos o petróleo, os diamantes, as influências culturais de França, Inglaterra e Espanha (tanto que é, em toda a África, o único país a falar castelhano), o catolicismo animista e as etnias Fang e Bubi. Você realmente acha que tudo isso no meio do continente que é o Espelho do Mundo não dá samba nem é interessante?
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Também repercutiu bastante o patrocínio do governo de um país majoritariamente miserável ao desfile. Eis que, bem, o governo de lá não tem nada a ver com isso. Quem patrocinou o carnaval da Beija-Flor foram empresas e mecenas de Guiné Equatorial e até mesmo empresários brasileiros.
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Por fim: falam da Beija-Flor como se apenas ela usasse meios escusos e nebulosos para financiar seus desfiles. TODAS (e gostaria de deixar o todas bem frisado) as escolas tem ligação recente e histórica com a contravenção. A começar pela própria Beija-Flor, que tem como presidente Farid Abrahão David, deputado estadual no RJ e irmão de Anísio Abrahão David, famoso bicheiro da Baixada Fluminense. Luizinho Drummond, presidente da Imperatriz Leopoldinense, esteve envolvido em diversos crimes. Castor de Andrade na Mocidade Independente, Natal na Portela, Maninho no Salgueiro... todas tem alguma ligação com algum contraventor.
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O enredo, obviamente, também foi muito questionado. Mas, por favor, também não venham questionar isso. Em 2006, a Vila Isabel foi campeã com um desfile financiado pelo governo venezuelano - que passa longe de ser um exemplo de democracia. Em 1989, a Mangueira homenageou Chico Recarey, empresário espanhol radicado no Rio de Janeiro envolvido em problemas por falta de pagamento de impostos desde a década de 1980. As popularíssimas Vila Isabel e Mangueira podem, a Beija-Flor não. Certíssimo.
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No final das contas, tudo o que falam visa apenas colocar pressão sobre os jurados para que, ano que vem, o título não volte para Nilópolis - pressão que já aconteceu antes. Falar que a escola teve um ótimo samba-enredo, muito luxo e que há muito tem o melhor chão do carnaval carioca deve ser proibido. Preferem falar que a Deusa da Passarela é apenas a escola da Globo porque ela aparecia no BBB (bem como a Mocidade Independente apareceu) - e como se a imensa maioria dos artistas globais não desfilassem na Grande Rio.
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Também tem gente que fala que a Beija-Flor ganha sempre com o mesmo desfile. Esse argumento é tão pueril que nem deveria ser respondido, mas lá vai: é um estilo, e é um estilo vencedor. O Salgueiro ficou mais de dez anos fazendo sambas no mesmo estilo, a Mangueira passou mais de oitenta anos sem fazer paradinhas na bateria, a Imperatriz ganhou carnavais que, se deixar, nem ela acreditava que seu estilo técnico traria para casa. E culpar a Beija-Flor por fazer um tipo específico de desfile? Me poupe.
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Que o título da Beija-Flor em 2015 seja um marco para a moralização do carnaval. Sim, do carnaval. A Beija-Flor está inserida nesse meio, e não é só ela que deve mudar. Engulam o choro - e tomem as críticas para suas próprias escolas.