Costumo falar que tenho dois ídolos: meu pai e Ayrton Senna. Muitos acham bonito e fofo, muitos me acham um brasileiro comum. Quando falo, porém, que considero Michael Schumacher o melhor piloto de F1 de todos os tempos, todos tem um baque. " Mas como assim, o Senna não é o seu ídolo ? ", perguntam. Pra começar, ter um ídolo não deveria significar cegueira, e sim admiração - confundimos demais essas duas palavras. O fato de achar Schumacher melhor que Senna não tira do brasileiro seu papel de meu ídolo, apenas reflete o desempenho dos dois nas pistas.
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É simples: a F1 é um negócio ( outro erro costumeiro é falar que a competição é esporte, pois não é ) frio, sem espaço para emoções. Sendo assim, é óbvio que o melhor piloto de todos os tempos é aquele que tem os melhores números na história. A imensa maioria dos recordes da F1 é de Schumacher. Dificilmente veremos um piloto ser campeão sete vezes, sendo cinco consecutivas, com tantas vitórias, tantas poles positions, tantas voltas mais rápidas e outros quetais. Schumacher é uma lenda na F1, até mais que Ayrton. Apenas não nos damos conta disso graças ao fim da vida de Senna e do não fim da carreira de Schumacher.
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Mundo afora, ganhou-se a crença de que Senna foi um mito. Mas, ao falar do melhor de todos os tempos, falava-se em Fangio, Prost, Lauda e outros. Gilles Villeneuve ( vitimado pelo circuito de Zandvoort, na Holanda ) e Ayrton ganhavam destaque também, mas por seu arrojo e por suas mortes, um patamar abaixo. Quem criou essa aura de melhor da história foram os brasileiros. Os brasileiros que só viam a F1 na Rede Globo.
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Para a Globo, sempre foi interessante o Brasil bem em algo internacional. Na F1, tiveram destaques a trajetória da equipe brasileira Copersucar ( que nunca ganhou uma corrida ) e de alguns outros pilotos, como José Carlos Pace e Chico Landi. Para prender quem assistia, falava-se muito do bicampeonato de Emerson Fittipaldi em 1972 e 1974, anos em que a Globo ainda não transmitia o circo - isso foi acontecer em 1979.
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Os anos 80 culminaram com o começo da cultura F1 brasileira e com o tricampeonato de Nelson Piquet na categoria ( em 1981, 1983 e 1987 ). Seria uma oportunidade perfeita para promover o país, o negócio e alavancar a audiência se não houvesse um pequeno porém: Piquet sempre viveu às turras com a Rede Globo. O carioca odiava a maneira ufanista e pouco esportiva ( naquela época ainda poderíamos chamar a F1 de esporte ) com a qual a Globo conduzia suas transmissões, com perguntas sem critério nem fundo nenhum. Era preciso alguém para combater Piquet e promover o país, e, em 1983, Senna testou com a Williams em Donnington Park, pulverizando o recorde da pista.
Logo em seu primeiro ano na F1, Senna fez história no tradicional GP de Mônaco, guiando uma fraca Tolleman em meio a um dilúvio sem precendentes a um histórico segundo lugar - que só não foi primeiro numa atitude mandrake da direção de prova. Pronto, encontrou-se o homem.
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A Globo, sobretudo Galvão Bueno, trataram de se amigar com o piloto. Fizeram o nome dele, elogiavam cada atitude sua, e comemoraram como ninguém seu tricampeonato ( 1988, 90 e 91 ), falaram de tudo do suspeito campeonato de 89, no qual Senna foi desclassificado da penúltima prova no Japão de maneira muito nebulosa, sempre exaltaram seus recordes... e o Brasil, claro, acreditava. Piquet era apenas um figurante de luxo para quem via a F1 da Globo.
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Lendo o livro " O Circo e o Sonho ", de Nice Ribeiro, é clara a relação da então repórter freelancer com os dois pilotos. Piquet sempre foi muito mais acessível e simpático; Senna, mesmo mais inteligente, era tímido, retraído e fechado. Visões totalmente opostas as de Galvão, ao do Brasil.
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No lendário programa Roda Viva, da TV Cultura, de 1986, todas essas teses são comprovadas com sobras. Desde aquela época Galvão Bueno é ufanista e mostra não entender nada de F1, é chato, cheio de frases feitas e de perguntas sem nexo esportivo e tenta promover o piloto a todo custo.
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Mesmo com todos esses poréns, Senna nunca negou quem era. Suas imagens são modificadas pela Globo, que fez dele o que bem quis para alienar a população. Na Cultura, Aytorn se mostra verdadeiramente e fala sobre Piquet, sobre a FISA e sobre todo o panorama da F1 naquele momento ( a entrevista é de Dezembro de 1986 ). Reparem que em nenhum momento o paulistano concorda com as megalomanias patriotas de Galvão Bueno, embora sempre tenha uma frase de esperança. Esperança era tudo o que tínhamos. O Brasil era o da esperança de Senna, e não o perfeito de Galvão.
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O meu ídolo é Senna. O Senna da Cultura, de Nice Ribeiro, de suas frases, de seu legado. O Senna da Globo e de Galvão eu dispenso.