domingo, 22 de janeiro de 2012

Crônica duma batida

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Tudo parecia normal. Na verdade, tudo era normal: garoa no ABC, futebol no rádio, eu e minha irmã brincando enquanto eu e minha mãe estávamos começando a discutir. O velocímetro marcava cerca de 30km/h quando um vulto cruzou a rua.
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O vulto era um Palio, que não respeitou a indicação de "Pare" na rua e na placa. Ele estava a cerca de 70km/h e não deu tempo de frear. A dianteira do meu carro ficou ruim, mas a lateral dele... se eu estivesse mais rápido alguém teria perdido a vida. Cheguei a pensar nisso naquela fração de segundo que durou uma década, quando você se dá conta que a batida vai ocorrer mesmo com o pé no freio. É angustiante ver e não fazer nada, por mais que não seja você o errado.
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Colidido, tratei de me acalmar. Ora, eu fiz o meu, o errado era ele. Minha mãe perguntou se eu estava bem, mas a Ellen chorava. Dizia que o cinto de segurança havia pressionado sua barriga. Enquanto minha mãe tratava de acudi-la, desliguei o carro, o rádio e liguei o pisca-alerta. Tudo isso praticamente no automático, sem reação alguma.
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Minha mãe retirou a Ellen do banco de trás e foi logo conversar com o outro motorista. Ela desceu arrependido e fez o mesmo que a minha mãe: ajudou sua filha, no banco traseiro. Enquanto a Ellen tinha dores na barriga, ela ralou a testa. Nada muito grave, mas todos sabem como são pais e mães.
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Senti um profundo desgosto quando a minha mãe, abaixada e pressionando a barriga da Ellen que ainda chorava, perguntou ao senhor se ele não tinha visto o carro. Ora, ao menos que ele quisesse bater o carro (ainda mais na região da porta esquerda dianteira, onde fica o motorista), é claro que ele não tinha visto. A pergunta foi extremamente desnecessária, ainda mais após o olhar de arrependimento que o senhor lançou para todos nós, praticamente pedindo desculpas sem movimentar os lábios.
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Após esse momento triste, ele pediu sim desculpas, dessa vez com a voz. Disse que o erro foi dele e que ele não viu as indicações nem o carro vindo na outra direção. Acidentes, não ? Acontecem, bola pra frente. Haveria um longo ritual agora, mas ele confessava a culpa e isso era meio caminho andado.
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Uma senhora, que morava na esquina do local do acidente, deu um copo de água com açúcar para a Ellen. Tenho certeza que ela estava muito mais desesperada que dolorida. Chorava, tremia, não falava coisa com coisa. Outro senhor acalmou a filha do infrator, que depois eu descobri que se chamava Marcos e era professor em Mauá - mesma cidade da placa do carro dele.
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Nesse instante chega um personagem que me fez ter uma visão mais tranquila de tudo. Um senhor engravatado tomava chuva e disse que, se eu estivesse em alta velocidade, provocaria a morte do cidadão. Ele disse que eu não fiz nada de errado, mas lembrou que seria necessário tirar o carro do meio da rua de alguma forma - apesar do radiador e da direção hidráulica totalmente destruídas. Liguei então para o seguro, como não sabia muito o que fazer no primeiro acidente enquanto motorista da minha vida.
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Pelos trajes, pensei que ele fosse segurança da empresa de ônibus que ficava próximo do cruzamento do acidente. Quando estava sozinho, o ouvi dizendo que era pastor. Quando ele falou isso, pensei que ele iria começar a querer evangelizar a todos e falar salmos e palavras de fé para confortar quem estivesse envolvido. Mas... não. Ele simplesmente falou que estava buscando materiais e desviou o assunto. É ótimo ver que existem pessoas que não deixam fé nenhuma atrapalhar sua visão da realidade, bem como ele não começou com o pedantismo de achar que há algo superior a nós e tudo mais.
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No final das contas, o guincho chegou e meu pai também. Fomos para a casa dele, em razão do aniversário da minha irmã caçula. Deixei contato com Marcos, para ele arcar com os custos.
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Dei sorte, apesar de tudo. Dei sorte do motorista ser humano a ponto de reconhecer seu erro e arcar com as consequências do que fez, além dele estar sempre calmo e disposto a conversar sobre o que causou. Percebi que meu autocontrole está em dia, a ponto de não me deixar levae pelo desespero de quem me rodeava. Estive tranquilo e de consciência limpa o tempo todo. Fiquei feliz por ter visto um pastor não querer impor sua fé para ninguém. Acima de tudo, aprendi que tudo pode parecer normal, mas, instantes depois, não se sabe de mais nada.
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Ainda estuou sem reação. Não atordoado ou desesperado, mas sme reação. A ficha não caiu e eu estou tão frígido quanto um mórmon. Fiquei orgulhoso da minha atitude, mas ainda estou sem reação.
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Vida que segue. Mas, por favor, sem mais batidas.
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